Eu faço samba e amor até mais tarde e tenho muito sono de manhã

O globo
Era mais um daqueles dias ensolarados, com o ar quente e doce da primavera, que terminam em pancadas de chuva no fim da tarde ou temperaturas que não se pode andar por aí sem, ao menos, um fino casaco. O ambiente não é novo, mas não muito frequentado por mim, por achar um pouco esnobe demais para o centro de São Paulo. Não sei, acho que jazz na praça mais sambista da cidade é algo que a gente custa a pegar gosto. Não pelo ritmo, mas talvez o contraste. E ele era o próprio contraste do lugar. Brilhava de longe, com cabelos e barba dourados, que faziam ondas milimetricamente desalinhadas, óculos de hastes caramelo e um porte pouco visto hoje em dia. Era uma mistura descolada dos anos 50, com jeito boêmio carioca quase da mesma época, ou menos. Segurava o cigarro por entre os dedos habilidosamente como se fosse parte das mãos. As repetidas ajeitadas no cabelo e o olhar curioso entregavam que também não estava lá muito familiarizado com tudo ali. 

“Soube há pouco que você entrevistou o ministro? Muito legal. Como foi isso?”, perguntei depois de ouvir a façanha por um amigo em comum, que me flagrou olhando para ele com curiosidade. “Ah, sim, é verdade...” respondeu, sem se estender muito, quase negando que aquele era um feito e tanto, diante de toda a polêmica e holofotes sob os quais estava o ministro àquela época. Gosto de pessoas que não se gabam por seus feitos, mesmo sabendo o quão importantes eles foram. Ponto pra ele. Se aproximou e quase como uma virada de acordes entre o bebop e o cool jazz, ficamos amigos. 

A maioria composta por jornalistas, já que ali estávamos para comemorar o aniversário de um deles, contávamos causos e, entre uma cerveja e outra, ensaiávamos a fuga para um samba raiz. Lá pelas tantas, o frio chegou e eu tremi. Sem titubear, ele prontamente me emprestou o casaco e, se animando, disse quase melodicamente: “Hoje quero ouvir um samba, estou com saudades do Rio”. Agora sem os óculos de sol, com os olhos azuis quase que cegando os meus. “Pois vamos! Também tenho saudades de lá e já faz muito tempo que não ouço um samba clássico. Saudades de Noel”. “Ah! Você também curte a super velha guarda? Eu gosto muito de Cartola e Vinic...” Interrompi. “Você não tem idade de quem gosta desse tipo de coisa?”. “Você não faz ideia...”, rebateu de pronto.  A casa de samba era nova pra mim. Meia luz, instrumentistas muito bem alinhados e como tocavam! A acústica era incrível e encaixava harmonicamente com a voz dele cantando ao meu ouvido enquanto dançávamos a primeira música. Entre um cigarro e outro, a nossa sintonia era como uma nuvem espessa que se poderia ver a dois quilômetros de distância! Não com pouca frequência, os olhos se voltavam para nós quando, gargalhando, descobríamos mais um gosto em comum. Vocês sabem como é. Noel, Vinícius, Tom, Cartola, Edith, Jaques, Chopin, Lapa, piano, café, miopia, astigmatismo, Ipanema, Copacabana e padaria da esquina. Expliquei que estava em um período de detox de sentimentos. 

Tinha resolvido há uma semana que ficaria longe de homens por tempo indeterminado. Bom, falhei miseravelmente. “Mas como é isso? Não se para de sentir as coisas assim”, perguntou surpreso, com as sobrancelhas douradas arqueadas, franzindo a testa e sacando mais um cigarro do maço direto para a boca, num malabarismo Cirque du Soleil, que me deixava impressionada. “Ah, dá sim. Quando você fecha esse ‘canal’, consegue abrir outro de mais introspecção e começa a relaxar. Dizem que é aí que as coisas acontecem. Mas você é muito novo ainda para entender”. Eu negava, mas estava muito impressionada com as afinidades entre nós e toda a cultura apurada que ele trazia como uma bagagem de couro polido, mas leve, como deveria ser, não se deixando abater por meu preconceito etário. Como se eu pudesse negar o óbvio: admitir que há vida inteligente antes dos 30. Talvez por minhas últimas experiências ou por não me achar tão interessante naquela época. 

“Você com sua música esqueceu o principal, que no peito dos desafinados, no fundo do peito bate calado...”, João Gilberto tinha agora sua vez aos meus ouvidos com a voz rouca adentrando a madrugada...  

Acordei ainda tonta, foram muito cigarros, mais ainda cervejas. A luz que entrava pelas portas da varanda semiaberta e os passarinhos cantando às 8h da manhã me fizeram ter pena da Branca de Neve que com certeza devia querer morrer com o mesmo cenário tão cedo. Acordamos juntos e, em minutos já estávamos na cozinha ensolarada, com grandes janelas e a brisa balançando as árvores. O pique era invejável. Eu me arrastava. Com um roupão felpudo vinho, esperei ele fazer o café, enquanto ouvíamos bossa-nova, lendo o jornal do dia. 

Era uma situação tão atípica e tão próxima do meu ideal de manhãs acompanhadas, que fiquei ali observando e tentando absorver cada minuto daquele garoto de perfil, pijamas, óculos de grau, xícara com desenhos abstratos, pernas cruzadas e cabelos bagunçados. Pelos poros, emanava um não sei o que de velha juventude, sabe? Um ar de “domino a economia mundial” com “sou frágil e inseguro”, de “percorro tranquilamente qualquer caminho da literatura e da música” com “quero deitar no seu colo e te contar meus medos”.  De vota à cama, duas horas se passaram sem que eu percebesse. Entrevista com o presidente, melhores bares do Rio, histórias familiares, o jornalismo atual, tudo foi assunto. Tudo muito interessante. Como uma daquelas experiências que se tem nas férias em algum país da Europa, com a fotografia de qualquer filme do Woody Allen. Depois do almoço nos despedimos. Eu voltaria a dormir, ele ainda teria um longo lançamento de livro pela frente em um bar. 

Apesar de vizinhos, nunca mais nos vimos, mas é como dizem: todos que se vão, deixam um pouco de si. Todos temos missões a cumprir. Aprendi que, de uma tarde despretensiosa em meio a um detox, pode vir enfim a inspiração e referência para o que se quer da vida. Que nos resgata da superficialidade e nos puxa de volta à essência perdida nos enganos por aí.  Mesmo que de alguém 12 anos mais novo.  Alguém fresco o bastante para nos encher de vida e experiente o tanto quanto possa nos instigar e nos alimentar a alma, ao som da música leve da vida, que flui sem esforços. Será que estamos aptos a perceber quando acontece?  Espero que sempre.
          

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