Sob a luz da metrópole

Parecia com uma daquelas moças já vividas. Tinha uma certa postura invencível, quase como uma redoma de vidro. Falava baixo com o garçom, enquanto apontava para o cardápio com os dedos finos e dois anéis em cada mão. Parecia forte. Daquelas que casam, descasam, namoram, desenamoram, vira e mexe deixa para trás três ou quatro homens falando sozinhos. Não tinha cara de quem se preocupava muito com isso.
Os óculos finos, negros, quase na ponta do nariz davam um ar sofisticado, quase frio, não fossem os lábios carnudos cobertos de um vermelho carmim. Os cabelos pretensiosamente bagunçados entregavam logo que ser discreta não era de seu feitio. Realmente não combinava com ela. Mas ainda faltava algo, não sei. Tinha um quê de vazio nos olhos, que me fitava vez ou outra enquanto bebericava a água com gás e limão espremido no copo grosso de vidro fosco. Arrumava a mecha caída entre os óculos e os olhos e, às vezes, soltava um suspiro e arqueava as sobrancelhas. Seria o livro assim tão extasiante ou ligava o fato escrito a algum acontecimento de seu passado? Claro, só poderia ser a segunda opção.

Fonte:wallhere.com
As botas vermelhas no final das longas e finas pernas deixavam bem claro que tinha um passado incrível! Talvez se recordasse do tórrido romance com o anglo saxão que conheceu em sua viagem pelo Caribe ou, melhor, lembrava-se da ida incrível ao Marrocos onde desbravou terras e cultura desconhecidas, misturadas a areia, bebida cara e vestidos esvoaçantes. Ou estava recordando seus anos vividos em Paris, aulas na Sorbonne, tardes de sol, brisa morna às margens do Sena e fins de semana percorrendo as praias do sul da França.
Não sei... Vai ver tinha visto um filme B espanhol na noite anterior, cuja música tocava em repeat o dia todo propositalmente no fone e, quando não, em seus pensamentos. Daquelas bem chicletes: “...Nowww, I’m falling in love...”. É, ela tinha cara disso também.
De quem se maravilha com lustres, enquanto pensa na dificuldade que é se descobrir profundamente. Vários deles, enfileirados, luz amarela, cristais redondos na ponta, como cachos de uvas flutuando sobre as mesas. Ficou olhando para um em cima do balcão a sua frente. Bem próximo ao espelho onde agora encarava a própria face. Franzia a testa, quase sem movimento. Olhos serrados, boca semiaberta. Parecia se perguntar algo que não saberia responder. Era pesado, triste. Sua boca arqueou para baixo segundos antes de levar a mão de volta ao livro, virar a página e mergulhar de novo dentro dele.
Levou à boca cuidadosamente mais um sushi molhado levemente no líquido negro que temperou com três lascas de gengibre e duas gotas de limão. Estava impávida. Como uma Vênus de Milo com braços.
Aos poucos a história parecia diverti-la. Abriu um sorriso e desviou o olhar novamente. O vazio foi o ponto escolhido. Entre viagens, filme B e música repetitiva haveria de ter mais alguma coisa.
De repente, em um súbito movimento ficou atenta, como quem é puxada das profundezas de um sonho de volta ao presente. Enfiou a mão na bolsa, agora sem elegância nenhuma, e tirou o celular. Digital de desbloqueio, olhos na tela e em movimento de leitura, que brilhavam pela luz forte.
E o brilho mudou, junto com a feição. Sorria! Sorria muito... Consegui ver todos os seus dentes de uma vez só. Agora escrevia urgentemente. De longe se via sua respiração acelerar e empurrar o suéter. Quem seria??! Fechou o livro, escorregou na cadeira, tirou os óculos enquanto gargalhou por alguns segundos. Sozinha, olhando para o espelho. Estava livre.

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