Futebór não é só futebór


Seu José é um daqueles homens rústicos, como ele mesmo se intitula, no auge de seus 70 anos, vindo do interior de São Paulo, cujo a quantidade dos erres pronunciados com a língua no fundo da garganta é proporcional à sabedoria popular que carrega. Por causa de fortes dores na barriga, já muito inchada pela doença, teve que ser internado em uma das alas de um grande hospital da capital.

Tímido que só ele, enquanto espera pela cura, seu José perambula pelo corredor do 4º andar em busca de distração. Tenta, a qualquer custo, manter o bonezinho já surrado pelo tempo na cabeça, mas, por normas hospitalares, nunca consegue.

Essa minha carequinha não é bonita, me disse uma vez pesaroso. Tentei convencê-lo de que estava muito bem-apanhado, como não?! E que sua mulher o amava de qualquer jeito. 

 - Ah, mas é que o bonezinho sempre me traz um novo amigo. 

Argumentou, enquanto tentava me convencer a ajudá-lo no resgate do objeto junto às enfermeiras de plantão, com um plano muito bom, aliás, que consistia em: "você pega e a gente corre!".

Não estava fácil convencê-lo de que eu era tão impotente ali quanto ele, então tentei a desistência, fazendo-o me explicar por que o boné era tão importante para angariar amigos.  

- É do meu time do coração e, com ele, eu tenho muito assunto. Posso falar do campeonato de 65 que assisti pessoalmente, lá na arquibancada, que era de madeira! Se a pessoa não conhecer a história daquela final, eu aproveito e conto tudim com detalhes!

Bom, fiquei sem argumento, claro. Como dissuadir um apaixonado, como eu, por futebol? Se tantos assuntos e amizades surgem exatamente por este motivo, não é, mesmo? Sei que você também concorda, leitor.

Decidi convidar, então, seu José para que na quarta-feira da próxima semana víssemos um jogo à tarde pela televisão, já que à noite é impossível conseguirmos tal feito dentro do hospital. (A verdade é que também fiquei com medo de ele se empolgar muito e eu ter que fazer uma visitinha ao RH)
Desconfiado, ele coçou a cabeça, olhou para o lado, olhou para mim e perguntou já forçando o sotaque, rindo no final:

- Futebór, é bão! Mas é do meu time? Numa quarta-feira à tarde? Sei não.

O campeonato era espanhol, as equipes estavam bem longe do futebol que seu José conhecia, mas, afinal, ainda eram 22 homens, uma bola e distração. Ele topou.

- Então te espero na segunda, menina. Não vai me largar esperando!

Fiz um sinal de joinha e voltei na semana seguinte.

Ele estava lá todo pomposo. Tomou banho, com a ajuda da esposa penteou os últimos cabelos brancos que restavam nas laterais da cabeça, camisola limpa e um sorriso no rosto.

- Opa, menina! Já tava te esperando. Cê veio, mesmo?

Morri de rir quando me explicou que estava "tão" chique pois o jogo era “nas Europa”.  Depois de ligar a televisão, os olhos dele brilharam. Achou o gramado lindo, a torcida linda, os jogadores nem tanto. Haha... Não sabia muito bem quem era o Real Madrid, mas gostou do uniforme. Disse que estavam bem alinhados e que na época em que jogava “nos campeonatos amadores da vida”, não tinham tanta sorte.

Em 90 minutos seu José esqueceu do dreno na barriga, das agulhas nos braços e das dores nas costas.  Vibrou a cada gol que ouviu, sem se importar com qual time havia feito. Sorriu, torceu e deu muita risada quando um dos jogadores levou uma bolada daquelas “você sabe onde”.

- Esse aí não anda mais, heim, menina! Háhá

Em pouco mais de uma hora, ele reviveu a mocidade, lembrou dos filhos no interior e, enfim, voltou ao tempo presente com mais força.

- Óia, hoje eu tô aqui, mas você vai ver, menina. Eu vou voltar com saúde para minha terra e vou te mandar um bonezinho igual ao meu! Cê quer? Agora já somos amigos.

Ah, seu José, se eu quero! As vezes, a gente acha que é só "futebór". Mas não é.

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