Ana, eu e a rampa

Não vou a um único velório há oito anos. Já fui execrada pelos membros da minha família, todos eles! Mas não vou, não adianta. Me digam: como é possível que a última imagem que você terá de alguém de quem gostava tanto, que era alegre, contava piadas, gostava de cachorro, futebol ou dominó, dançava, cantava, que de alguma forma te ensinou algo e te deu exemplos, será deitado, pálido, em uma caixa de madeira? Não vou a velórios. Homenageio os vivos.

Bem, no hospital onde trabalho, assim como em todos que existem, tem um necrotério. O que seria completamente irrelevante para mim, se a rampa que dá acesso a ele não ficasse ao lado da minha sala. Descobri isso há pouco (foi um choque) e, desde então, não saio sem antes dar uma espiada para conferir se tenho “visita” subindo ou descendo. Que tormento. Essa relação com morte e cadáveres sempre foi um problema, confesso. Mas para Ana, a moça que nos ajuda na limpeza, não é.

Apesar da rotina pesada, ela sempre entra na minha sala com um sorriso. Eu fico na porta, trocamos meia dúzia de palavras sobre o dia, o trabalho, a família (tem uma filha que passou maus bocados por causa de uma doença nos rins) e a vida segue. Mas hoje foi diferente. Ana entrou e eu não sai. Ela achou estranho, mas não comentou, e eu logo emendei a conversa, com as sobrancelhas arqueadas:

- Você já viu alguma maca passar por aqui e subir a rampa? 

Ela olhou para mim e, percebendo o motivo da pergunta, respondeu de pronto:

- Claaroo, muitas e muitas vezes. Entrando e saindo... uma vez, o corpo de uma mulher estourou lá dentro e tivemos que limpar.

Disse com a naturalidade de quem foi ali lavar as mãos e voltou. Depois dessa informação “privilegiada” e com meu café da manhã já na garganta, ela continuou:

 -  Certa vez eu estava por lá limpando e estavam trocando um homem. Tinha que ver. Alto, forte, moreno, parecia bonito. Viravam para um lado, para outro... eu fiquei três dias sem dormir pensando como a nossa vida não vale nada, como a gente é frágil...

Contava olhando para o vazio, como se imaginasse a vida daquele homem antes dali.

Como será quando formos nós naquela sala gélida? Teremos dançado, viajado, lido, curtido, amado, ensinado, sido exemplos, chorado e cantado tudo que poderíamos? Hoje eu posso dizer que ainda não.

Sob meus olhos ainda vidrados e a admirados com sua sensibilidade, ela finalizou como quem falava com uma criança:

- Mas, ó, a gente acostuma, viu? Não precisa ter medo. Se você quiser, um dia eu te levo lá.

Ajeitou a mecha de cabelo atrás da orelha, guardou seu material no carrinho, arrumou o uniforme e partiu, me deixando sozinha, a refletir sobre as mil e uma coisas que envolvem a morte e a coragem.

Acho que não aceitarei sua oferta tão cedo, mas, enquanto pego um café, olho para a rampa já quase sem medo.      

Comentários

  1. Tá certa eu o único que foi é pq não tinha jeito foi o do meu pai 9 anos 4 meses e unsdias atrás, outros não vou e não voltei cemitério que ele está

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